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José Luiz Mendes Ripper (28/09/1935 – 14/03/2025)                                                <

 

Conheci Ripper no final dos anos 60, quando, além de aluno, ele exercia a função de assistente do professor Edgard Duvivier, responsável pela oficina de modelagem e gesso. Como lembrou Joaquim Redig, ilustre esdiano, seu colega de turma, num encontro casual dias atrás: “Ripper já ingressou na escola como mestre”. De fato, para mim e muitos outros, os sessenta anos de convivência, além da amizade, foram uma sucessão de aprendizados.

 

Personagem único, guardando, a meu ver, forte semelhança com o personagem de Kurosawa, Dersu Usala, um ser humano de altíssimo astral, integrado à natureza, com grande intuição, sabedoria e conhecimento prático dedicado às pessoas, Ripper, dez anos mais velho do que nós, ao ingressar como aluno na Esdi já era arquiteto formado, com experiência em construção, inclusive na Bolívia, onde trabalhou em programas intergovernamentais. Arquiteto de mão cheia com incrível noção de espaço, a casa em que resido é uma prova, desde a situação no terreno ao ambiente formado por estrutura de madeira e tijolos aparentes.

 

Acompanhei todo processo, do anteprojeto ao desenvolvimento e construção, às sucessivas maquetes em escalas crescentes. Memorizo diálogos: “arquitetura é telhado e luz, e o mais importante, aeração! Uma boa casa é aquela que, imaginada de cabeça pra baixo, deixa escoar toda água nela despejada”. Daí, a abertura zenital da casa, um quadrado com praticamente dois metros de lado, originalmente fechado por um sistema formado por quatro triângulos de poliéster translúcidos, podendo ser abertos manualmente, acessados por uma escada quase circense, com “degraus” – canos de ferro fixados na coluna central existente – distanciados ergonomicamente para os movimentos de minha escalada até um patamar de onde desamarrava e abria, um por um, os quatro triângulos que formavam a pirâmide superior. “Casa é como barco”, repetia, no início dos anos 80, tinha eu uns 35, 36 anos, aceitei a ideia. Com o avanço da idade e medo de queda, o sistema foi substituído por um sistema industrial, com comando acessível do chão. Ripper não chegou a ver a alteração, de fato não tive coragem de mostrá-la, poderia se sentir traído por não o ter consultado a respeito, como acontecia em todos os projetos de comunicação visual que incluíam questões tridimensionais.  

 

Por sorte, logo que me formei, ingressando como professor na escola e com algumas demandas de trabalho, fui convidado a participar de um espaço que Ripper dividia com seu irmão Luiz Carlos Ripper, importante cenógrafo e autor teatral, uma figura também excepcional. Convivemos em uma casa estilo Missão Francesa, com anteparos de varandas e colunas em ferro fundido. Ocupávamos, Ripper e eu, o segundo andar; Luiz Carlos, uma pequena casa separada, no alto do terreno, com acesso por uma rua superior. O andar térreo era ocupado por uma pacata família. Tive assim, além da oportunidade de interagir em projetos, a oportunidade de assistir as realizações cenográficas dos irmãos. Ideias extraordinárias transformadas em realidades simuladas por volumes e luz. Como na peça Avatar, encenada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, contendo no palco coberto de areia grandes bicos de pássaro moldados em poliéster, com iluminação embutida.

Mudanças e trajetórias diversas, o ingresso de Ripper no curso de design da Puc-Rio, mais próximo de sua residência e da praia, não interromperam nosso contato constante e as muitas lembranças, como a montagem de maquetes e sessões de fotografia nas dunas da Barra da Tijuca, quando ainda existiam, e quando Ripper integrava a primeira leva de surfistas cariocas (para quem não sabe, ex-atleta, nadador, praticante de polo aquático), fora o contato quase diário quando vizinhos no Leblon, cenário do qual participava ativamente em seus percursos numa antiga bicicleta. Um detalhe: Ripper era elegante, desenhava suas próprias roupas para serem confeccionadas em Caxambu por costureiros da região (em geral, calças de amarrar e confortáveis camisas em finos tecidos de linho ou algodão). Em cores discretas, a indumentária complementava o aspecto filosófico, intuitivo e de certa maneira religioso, no trato das questões técnicas envolvidas nas pesquisas e projetos realizados sob sua supervisão.

 

Duas linhas de pesquisa notáveis caracterizaram sua trajetória na universidade, o próprio curso de graduação para o qual formulou um sentido social – Design para a sociedade –, e o  laboratório Lild, dedicado a pesquisas relacionadas ao uso do barro e do bambu, que também incluíam projetos vinculados à instituição de assistência a portadores de deficiência, vizinho ao espaço do laboratório, na época, situado em um grande estacionamento.

 

Em um panorama voltado à ecologia, à redução de fatores poluentes como, p.ex., queima de tijolos e desmatamento, é interessante pensar em muitos instantes de sua trajetória profissional, iniciando por sua formação na arquitetura moderna, tendo, inclusive, participado de projetos desenvolvidos na Novacap sob tutela de Oscar Niemeyer, projetos notabilizados pelo uso de ferro e concreto. Mais recentemente, sua proximidade com Buckminster Fuller, como o Domus Geodésico e estruturas tencionadas, aplicadas no laboratório, pela primeira vez, em bambus, sendo notáveis os exemplos existentes no campus da universidade, realizados por competentes e diletos discípulos.

Certamente serão diversos e ricos os inúmeros testemunhos de convivência e aprendizado com Ripper, tanto dos colegas e alunos que o cercaram, quanto dos funcionários e ambulantes extra campus. Minha lembrança mais recente, no convívio do mestrado e doutorado que realizei junto ao laboratório, sob sua orientação e benéfica desorientação, como costumávamos brincar, remonta às excursões vivenciadas a Tiradentes e Andrelândia, localidade em que foi instalada uma capela construída pelo laboratório, com estrutura de bambu e paredes de terra crua.

 

Difícil resumir José Luiz Ripper, figura humana, cientista, pesquisador, arquiteto, designer, educador, inventor, artista. Em referência à arte, me obrigo a citar um projeto de escultura para participação em um concurso, instituído por um órgão ligado à prefeitura da cidade, para instalação de esculturas em parques e jardins. O projeto de Ripper consistia em uma lâmina de aço, de um determinado calibre, comprida, cortada ao meio no comprimento até um determinado ponto, como pernas presas no quadril. Nas extremidades inferiores, pesos específicos calculados, instalados como sapatos, assegurariam equilíbrio e movimento proporcionado pelo mais leve fluxo de ar. Testemunhei a maquete, vi a escultura em escala reduzida se movimentar. Mágica! Não resisto a estabelecer na descrição do amigo, uma semelhança com os mobiles e brinquedos de Alexander Calder. No âmbito do design, vem à lembrança uma poltrona em forma de cone, produzida artesanalmente em poliéster com fibra de vidro, material rígido, resultando, contudo, em uma poltrona confortabilíssima, e levíssima, para uso em ambiente interno ou externo. Exposta na Primeira Bienal Internacional de Desenho Industrial, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (durante bom tempo tive uma  emprestada e usufrui desse conforto). No âmbito da arquitetura, e do design, relembro maquetes e protótipos, incluindo os experimentos laboratoriais, principal meio de raciocínio e expressão. São também muito expressivos os desenhos, mesmo produzidos com lápis toscos em papeis amassados de embrulhar pão. Óculos remendados, amarrados...

 

Muito mais a dizer, interrompo aqui, conclamando discípulos e colegas à organização de um completo testemunho de sua passagem na vida, através do design e da arquitetura que praticou, do meio ambiente, e da geografia! Campos de estudo de seu especial interesse que nortearam suas pesquisas. Viva Ripper!

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